sábado, 4 de dezembro de 2010

A praia é pública, não é privada



A dona do nosso lazer

Esse foi o mote de uma campanha de educação dos banhistas que aconteceu há algum tempo no Rio de Janeiro. O cartaz contava com a imagem de um vaso sanitário recebendo o lixo que é jogado nas areias e no mar.

O slogan é um chiste preciso e abrangente: mostra que não podemos esquecer que a praia é um bem público, e por isso não podemos tratá-la como se fôssemos os únicos a usá-la depois que formos embora.

Infelizmente, o slogan permanece atual. Só que, além da atitude dos banhistas, ele diz respeito à mentalidade do poder público, da qual a gestão do Prefeito do Rio é apenas um dos expoentes. Tal situação também é um exemplo de como a lógica privatizante pode ser um tiro no pé da população - ao contrário do que e propagado por seus defensores.

Quem frequenta as praias do Rio sabe a importância dos postos de salvamento. Tanto para seu objetivo principal, com os guarda-vidas sempre a postos, como para o conforto dos banhistas. Ali também há banheiros e chuveiros.

Enquanto a Comlurb (companhia de limpeza urbana da Prefeitura) administrava os postos, ficavam sempre dois garis em cada posto. Regulavam a entrada dos usuários para não haver superlotação. Faziam todos passar pela catraca, permitindo que a administração saiba quantas pessoas usaram, facilitando até na fiscalização contábil (custa R$ 1,00 para usar o posto).

Os garis também só abriam os chuveiros quando as pessoas se posicionavam para tomar banho. Fechavam quando elas terminavam, evitando o desperdício e a falta d'água. E, seguindo o ofício, sempre mantinham o posto limpo, mesmo durante os dias movimentados.

Pois enquanto o choque de ordem fazia barulho pela cidade, a Prefeitura privatizou a administração dos postos da orla sem nenhum alarde. A empresa Orla Rio, que já tem a concessão dos quiosques, recebeu a dos postos, do Leme ao Pontal.

E o que se vê agora? Postos com água acabando antes do fim da tarde, por exemplo. O que dá pra entender quando você consegue usar um: não há mais nenhum cuidado. A pessoa designada pela Orla Rio apenas recebe o dinheiro. Todos vão entrando, com todos os chuveiros abertos ininterruptamente. Sem regulação e sem catraca, é um povaréu no cada-um-por-si dentro do posto.

Sem contar a sujeira. Nem sequer um rodo é passado no chão, ou a areia varrida. Quem quiser usar o chuveiro, tem que se aventurar na água suja antes de tirar a areia do corpo.

E aí eu te pergunto: por que privatizar, se o serviço era bem feito pela prefeitura? Qual a lógica de piorar um bom serviço no cartão-postal da cidade? Sem contar que a Orla Rio, quando teve o contrato prorrogado, tinha uma dívida de R$ 1,5 milhão com a Prefeitura (*). Como uma empresa inadimplente pode ser apta para ganhar uma licitação do próprio credor?

A orla carioca é um patrimônio ecológico e cultural da cidade. É claro que o Rio de Janeiro não se resume às suas praias, todas na Zona Sul. Mas esse pequeno exemplo dos postos de salvamento mostra como pensa nosso prefeito. E o silêncio (ou assentimento) em torno do assunto mostra como a imprensa e boa parte da população estão anestesiadas quando o assunto é o interesse público.

(*) - Conforme reportagem da Veja Rio

As aparências não enganam

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O Rio de Janeiro continua sendo



O medo dos cariocas é legítimo. Mas o que eu me pergunto desde o início dos ataques dos bandidos à cidade é: o que fazer a partir disso? Porque apesar de tudo, nossa vida não pode parar. E acabamos agindo sem pensar no que estamos fazendo, o que só potencializa a imobilidade pelo medo.

Diante dos atos de violência, as empresas estão liberando seus funcionários mais cedo. Qual a lógica disso, se os ataques aconteceram em diferentes horários do dia? Qual a garantia que não vão acontecer antes das seis da tarde? Ou mesmo às nove da noite?

A polícia recomenda que a população fique em casa nessa noite, por segurança. E o pessoal que mora em frente aos carros e ônibus estacionados que foram incendiados? Eles ficaram em casa durante o dia e não escaparam do ruído da explosão e da possibilidade de estilhaços em seus apartamentos.

Os fatos já são ruins por si só. Mas a reverberação deles, graças ao desenvolvimento e à mobilidade das tecnologias de comunicação, torna o medo onipresente. Até quem não passou por momentos de terror sente-se invadido pela sensação de segurança ao ver, ouvir, rever e "reouvir" os relatos.

Mesmo que não queira. Fui almoçar, lá estava a TV ligada mostrando tudo ao vivo. Minha esposa voltava da faculdade e teve que ouvir as TVs via celular (em tempo real) das pessoas ao lado. Abrir a primeira página dos portais de notícias é ver o "show" de imagens e transmissões em tempo real.

O que me lembra um artigo do amigo Rômulo Dias, jornalista e historiador, em que ele defende a tese de que o mundo nunca foi tão pacífico. Após relatar as guerras em outras épocas, e analisando o protagonismo da imprensa nos momentos de pânico coletivo, ele argumenta:

"Hoje, a escassez do modelo clássico de guerra faz com que não tenhamos as mesmas perdas humanas que tivemos no passado. Contudo, a sociedade em que vivemos sente-se mais insegura que aquela de outrora. A ameaça terrorista nos traz a perspectiva do perigo a qualquer tempo e em qualquer lugar. Civis ou militares, todos podemos pagar pelo mundo desigual e intolerante em que vivemos.

A lógica do terrorismo dialoga diretamente com uma proposta desestabilizadora. O terrorismo é inofensivo se não consegue gerar um sentimento permanente de pânico. Um ataque mata 15, 20, pessoas. No entanto, não é a potência do ataque que importa, mas a impossibilidade de saber onde e quando o mesmo irá acontecer.

A imprensa contemporânea é, dessa forma, um ator fundamental no sentido de colaborar com a atividade terrorista, esteja o terrorismo relacionado ao tráfico de drogas ou aos ataques orquestrados pela Al Quaeda. Queiramos ou não, a informação sempre chega às nossas casas nos dias de hoje. Os meios de comunicação nos obrigam a ter medo, mesmo que a morte seja improvável. Talvez, contraditoriamente, este mundo em que vivemos seja de uma paz sem precedentes."

Diante desse aspecto, em conversa posterior à publicação do artigo, ele defendeu que a imprensa não deveria fazer a cobertura dos ataques terroristas. Na sociedade do espetáculo tão bem prevista por Guy Dèbord, a realidade é vivida e sentida quando se revela na mídia. "O que os olhos não veem, o coração não sente".

E se o primeiro ataque não tivesse aparecido na TV? Se fosse solenemente ignorado por todas as emissoras e veículos de comunicação? Será que estaríamos tão aterrorizados? Provavelmente não.

Mas no mundo do fetiche da velocidade, expresso no jornalismo em tempo real (conceito definido pela professora Sylvia Moretzsohn), a notícia virou mercadoria. As prateleiras dos meios de comunicação não podem ficar vazias. Mesmo que seja pra termos ciência de informações importantíssimas para o destino da nação, como o fato de Claudia Leitte planejar ter quatro filhos.

Voltando ao ponto de partida: o que nós, cariocas, devemos fazer a partir desse medo institucionalizado? Primeiro, manter-se informado na medida da sanidade. Se você sabe que está ocorrendo um tiroteio em determinada avenida por onde você passaria, não passe. Aí sim, dê um tempo.

Mas se não há nada acontecendo, vá em frente. Não faça uma auto-prisão. Não podemos aceitar que o Rio de Janeiro seja uma cidade violenta e que estaremos sempre à espera do próximo pseudo-estado de sítio. O Rio de Janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo. Nossas vidas continuam, apesar da sensação de impotência.

Ou você vai começar a faltar ao trabalho? Vai deixar de sair com os amigos? Vai blindar a sua casa e pedir comida a domicílio? Não, ninguém vai fazer isso. Portanto, dá pra ter coragem quando a gente percebe os exageros das Cassandras.

E mais importante: cobrar de quem se deve. Critico Sergio Cabral e Duda Paes por suas decisões políticas, mas não serei idiota de negar os benefícios das UPPs. E que todo trabalho precisa começar por algum lugar, nem que sejam os trajetos de Copa e Olimpíadas.

Mas as perguntas que já estão no ar faz tempo são: e o resto das comunidades? E os bandidos que fugiram das UPPs? Que a Vila Cruzeiro, em pleno Complexo do Alemão, estava sendo o refúgio deles, até o carioca mais desligado já sabia. Que era uma questão de tempo que aquilo explodisse, idem.

A realidade é complexa, eu sei. Além disso, os aparatos do Estado não são suficientes (alô, alô, neoliberais: aquele abraço!). Mas os cidadãos cariocas precisam cobrar permanentemente de quem se dispôs a assumir o compromisso de ser uma autoridade pública. E para toda a cidade, não apenas para os de IPTU altíssimo.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Muito cedo, muito cedo




É preciso coragem para assistir ao documentário "Senna", que estreou nos cinemas sexta-feira passada. O filme mostra o herói sem esconder a faceta humana errática e vulnerável. E não só pelo final que todos nós conhecemos.

A relação de Senna com o Brasil era a de um imaginário que se tornava real a cada domingo, encarnado no cockpit de um carro de Fórmula 1. Em meio à "década perdida" na economia do país, lá estava o Brasil em primeiro lugar, ultrapassando as demais potências sem baixar a cabeça pra ninguém. E sem a arrogância de um Piquet ou um Schumacher, só o carisma com fome de vitória, de não querer ser sacaneado ou ficar pra trás.

O documentário de Asif Kapadia é de excelente qualidade. A narrativa é muito bem conduzida, há inúmeras imagens inéditas de bastidores e papos ao pé no ouvido nos boxes, além de entrevistas a TVs estrangeiras. A rivalidade com Prost e a guerra contra o sistema - encarnado na figura de Jean-Marie Balestre, presidente da Federação Internacional de Automobilismo - traz Senna para a trincheira dos oprimidos. Dos "Davis" contra o Golias de sempre. Tal um Capitão Nascimento, mas real e acompanhado ao vivo.

É claro que, para a bilheteria, o timing do filme é ótimo. Quem nasceu após a morte de Senna já tem idade para acompanhar F-1, e tem a chance de conhecer o que os mais velhos tanto falam desse Ayrton.

Mas para quem acompanhava o esporte e vibrava a cada Grande Prêmio, 16 anos ainda parece cedo demais. Vimos as imagens daquele fatídico fim de semana milhões de vezes. E cada replay, cada cobertura jornalística do acidente e suas consequências, era uma punhalada em nosso coração. A ferida ainda parece aberta no cinema em 2010.

Devido a essa sensação de que foi ontem que tudo aconteceu, fica difícil curtir a rememoração dos feitos de Senna do kart até a McLaren. Isso porque nos sentimos numa contagem regressiva até o inevitável. Todas as falas e pensamentos do tricampeão soam premonitórias demais, quase assustadoras.

Senna mostra que sabia dos seus limites. A evocação constante de Deus em sua carreira, além de uma confissão de fé pública e sincera, parece sublinhar que ele era humano, demasiada e honestamente humano. O permanente semblante compenetrado do piloto parece dizer à audiência o tempo inteiro: "Por que vocês acham que um campeão de F-1, ídolo mundial, estaria acima dos mortais? Ou seria imortal?".

O documentário atinge seu ápice ao mostrar um Ayrton Senna totalmente em conflito consigo mesmo no último final de semana de sua vida. Racionalmente, ele não queria correr. Mas sabia que devia correr, que sua vida não fazia sentido se ele desistisse. É como se estivesse numa missão para a qual foi predestinado, mesmo que isso envolvesse o sacrifício. A mensagem que ele diz ter recebido de Deus ao ler a Bíblia naquele domingo só confirma essa impressão.

Saí do cinema triste, pois é uma linda história com um final muito triste. E o diretor soube captar isso bem demais. No entanto percebo que o incômodo também existe porque, mesmo sem sermos pilotos de F-1, não sabemos nossa hora de partir. Que garantias temos, qual é o nosso "carro infalível"?

Não tenho outra opção a não ser voltar a Senna. A todo momento, ele olha para o Alto, busca e enxerga Deus, agradece a Ele pelas vitórias, reconhece Sua força e sua finitude. Não é piegas (como muitas matérias da TV aberta sobre o assunto fazem parecer). A 300 km/h, a confiança de Ayrton Senna estava nAquele que tudo pode.

Duvido que Senna tenha ficado "chateado" com Deus por encerrar sua vida aos 34 anos. Enquanto esse dia não chegava, ele dava o seu máximo, fazia o seu melhor, cultivava uma sensibilidade social - taí o Instituto Ayrton Senna pra provar - amou e retribuiu o amor de muitos.

É essa a lição que aprendo até o incógnito dia de minha última curva.

"Não que eu o tenha já recebido, ou tenha obtido a perfeição; mas prossigo para conquistar aquilo para o que também fui conquistado por Cristo Jesus.

Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam, e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus." (Filipenses, 4:12-14)

"Todo atleta em tudo se domina; aqueles, para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, a incorruptível" (I Coríntios 9:25)




sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Aborrecendo toda vida

"Living is easy with eyes closed", ou seja, "Viver é fácil com os olhos fechados", diz a música dos Beatles. A cada dia vejo mais gente que adotou essa postura e que consegue sobreviver assim. Não no sentido de fazer vista grossa para o que surge, mas recusando-se a assumir responsabilidades, fechando os olhos para a chegada da vida adulta.

É o que estudos psicológicos já classificam como "adultescente". Aqueles que prorrogam a adolescência infinitamente, por alguma razão. Continuam morando com os pais, não se firmam em relacionamentos que possam virar uma nova família, portam-se como adolescentes no cotidiano de trabalho - rebeldes sem causa e querendo sempre estar satisfeitos.

Na lógica capitalista que rege nosso mundo, somos tratados como consumidores a todo momento. E quem não tem potencial de consumo é simplesmente excluído. O que era uma realidade socioeconômica se estendeu para o comportamento humano.

Não gostou do produto que adquiriu? Descarte ou troque por outro. Logo, logo você será tentado por desejos novos em folha, sempre a última moda. "Por que ser você, se você pode ser novo?", dizia o vilão do filme Robôs. Vivemos uma era de insatisfação permanente, que atinge todas as nossas facetas.

O sexo, os relacionamentos, a política, a economia, o bem-estar... Tudo é alvo de nossa insatisfação, que é devidamente cultivada. Afinal, se estivermos plenamente satisfeitos, qual a razão de continuar consumindo, querendo algo novinho?

"Os políticos são todos corruptos, a democracia não serve, era melhor no tempo da ditadura". É a insatisfação consumista na nossa cidadania. "O negócio é pegar todas, pegar várias, dar pra vários, colecionar performances sexuais". É a lógica predatória da competição capitalista invadindo (e banalizando) nossa sexualidade."Se não der certo, separa; o divórcio é cada vez mais fácil, os filhos se acostumam". É a redução dos compromissos à escravidão da satisfação nunca alcançável.

Nesse contexto é que estão os "adultescentes". O que é o adolescente senão alguém que não gosta de ser contrariado, não tem responsabilidade plena e que adora consumir de tudo, sem freios? Prorrogar a adolescência intere$$a a muita gente. Mas o que me deixa impressionado é que as pessoas estão vivendo dessa maneira, muitas vezes sem sequer sofrer consequências disso.

A geração dos meus pais foi criada sob o signo do esforço. Desde criança tinham que estudar, "ralar muito", trabalhar duro, conquistar as coisas com o fruto do suor deles. Na minha geração, há muitos que nascem no ar condicionado e espereneiam toda vez que sentem um calorzinho, ou quando precisam ter um mínimo de iniciativa.

Não raro as consequencias recaem sobre quem não embarcou nessa "adultescência". E em dobro: sofrem por serem obrigados a conviver com pessoas assim e por terem que arcar com as responsabilidades dos "adultescentes", além das que lhes cabem.

Aí vemos famílias, ambientes de trabalho, grupos de todo o tipo com essa dualidade permanente: gente que encarou o desafio da vida adulta e gente que vai procrastiná-lo o quanto puder. E o pior é quando os "adultescentes" encontram figuras de autoridade que se portam como "papai" e "mamãe", daqueles que relevam tudo o que o filho faz de errado, reforçando a condição.

E quando os filhos dos "adultescentes" chegarem à adolescência? Pode até ser uma vingança, mas não será uma solução.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Gugu-dadá? Já deu, né?

Estou impressionado com Paulo Henrique Amorim. O experiente jornalista fala no seu blog como se fosse uma criança de 11 anos. Como disse a Marina Silva, os candidatos e seus porta-vozes infantilizam cada vez mais o eleitor. Taí a guerra nas redes sociais pra provar.

Um país não se constrói com rixas mesquinhas, "dores de corno" e afins. Nossa realidade é muito complexa, os maniqueísmos não dão conta dela. Não adianta aceitarmos a polarização PTxPSDB, religiosos x resto, e tantas outras segregações que incitam ambos os lados à destruição mútua. Afinal, a Guerra Fria já acabou. Vamos requentá-la internamente? Temos um país para seguir construindo, líderes para serem cobrados e fiscalizados.

Precisamos assumir de uma vez por todas o papel de cidadãos, e não o de torcida organizada ou xenófobos do gueto (seja qual for).

Hoje mesmo recebi o email da troca de cartas entre mãe e filha sobre o PT. Pra que enviar isso agora, que não dá mais pra votar? Tortura? E será que a intenção era esclarecer os recebedores do email? Ou tão somente marcar posição, quase na pirraça, reforçando a segregação?

Confesso que estou de saco cheio desse climinha infantil. E lembro das palavras do apóstolo Paulo: "Quando eu era menino, pensava como menino (...). Quando, pois, vim a ser homem, deixei as coisas próprias de menino." Brasileiros, que tal amadurecermos?

sábado, 23 de outubro de 2010

Apontamentos num caderno, redescobertos hoje

Eu o encontrei por acaso. Passava pela calçada e o vi num restaurante do centro da cidade. Parecia ter acabado de comer e estava com aquela preguiça de levantar da mesa logo após. Tinha um pouco de olheiras, estava meio trsite, meio perplexo. As mãos estavam juntas abaixo do queixo, cotovelos na mesa. Refletia sobre algo, pensava longe, olhava idem. Pelo o que conhecia dele, não estava bem.

Entrei no restaurante e sentei numa mesa perto de onde ele estava. Eu prestava bastante atenção nele, que sequer me notava - mesmo eu estando perfeitamente em seu campo de visão. Mais tarde vim saber que estava imerso em seus problemas, distraído pela incredulidade.

Resolvi falar-lhe.

- Você está irreconhecível!

Ao se espantar um pouco com a abordagem inesperada, devolveu:

- Eu poderia dizer o mesmo.

Não entendi. Mas não quis inquiri-lo, seu semblante transbordava indagações insolúveis. Procurei ser uma alma amiga, fazendo uma pergunta que poucos têm coragem de fazer querendo dizer exatamente o que ela diz:

- Como você está?

- Indo.

- Pra onde?

Ele riu rápido, mais por consideração do que por ter sido afetado por alguma graça. Na verdade, parecia imune a ela.

- Estou mal.

- Por quê?

Ele suspirou, como se tivesse que responder aquilo pela milésima vez. Ou como se estivesse cansado demais para responder.

- Refém.

- Do quê?

- Do que ou de quem?

- Me diga você.

Então ele riu de uma maneira bem diferente. Com um ar de sarcasmo, como se eu soubesse a resposta e estivesse perguntando de sacanagem.

- É muita ironia...

- Eu perguntar isso?

- É.

Ficamos em silêncio, um fitando o outro. Ele desviava o olhar, sempre cansado. Eu hipnotizado pela curiosidade.

- Fala, cara!, disse eu, caminhando para a impaciência.

- Não há muito o que falar. São meses e meses de angústia em busca de algo que vai ser muito bom quando eu conseguir.

O clima de mistério me emudecia.

- Enquanto eu não consigo, há terroristas em toda parte, com os interesses mais diversos, querendo me pressionar, me botar...

- ...de refém.

- Viu como você sabe?

- Bom, você já tinha dito antes.

- Enfim. Sabotando minha felicidade, o tempo todo.

- Se isso te serve de consolo, você não é o único a passar por isso...

- Isso não me serve de consolo, porra!!

A raiva foi inesperada, tanto quanto o palavrão. Estava mal mesmo.

- Foi mal, desculpa - disse ele.

- Tudo bem. Fala.

- Fazer tudo certo não garante que tudo vai correr bem.

- E a consciência?

- Ah, ok. Mas eu não estou fazendo um julgamento moral, não. Não me arrependo de ter feito o certo, o que me cabia. Mas isso não parece suficiente para me deixar bem.

- Quando depende só de você, é suficiente.

Isso o desarmou.

- É, não depende só de mim...

- E quando você depende de outros, quem garante que eles vão fazer o que cabe a eles?

Ele assentiu, voltando à reflexividade desapontada de quando o encontrei. Pelo visto, sentiu-se impotente.

- Você está dependendo de quem?, perguntei.

- Dos terroristas. E dos incompetentes.

- Tá maus.

Assim que terminei a frase, me arrependi. Fiquei preparado para mais um acesso de raiva, que não veio.

- É...

Suas últimas forças, sua última disposição para ter alguma iniciativa pareciam ter sido usadas na frase do palavrão. Estava inerte. Retomei:

- O que você está sentindo?

- Medo.

- Do quê?

- De acontecer alguma coisa e eu não conseguir o que estou buscando faz tempo, e  que vai ser muito bom pra mim.

- "Alguma coisa" pode acontecer a qualquer momento. Qualquer coisa.

- É verdade - concluía ele com uma nesga de esperança.

- Então...

- Na verdade, ando refém do medo.

- Eu sei.

- Eu sabia que você sabia...

- É que só agora, ouvindo você, percebo com mais clareza.

- Imagino. Queria sentir o mesmo.

- Na verdade, eles dependem muito mais de você do que você, deles.

- Hã?

- Pensa só. Se eles te aterrorizam usando o medo, é porque não têm nada concreto para usar. Precisam do abstrato, da especulação para fazer o jogo psicológico, o abalo emocional. Você está do jeito que eles adoram.

- É verdade - ele sempre falava isso ao fim de cada aprendizado.

- E os incompetentes não vão durar muito tempo, se esmeram em tropeçar nas próprias pernas. Sem exagero: você é competente. Está querendo fazer o que te cabe, e está conseguindo.

- Estou fazendo tudo o que posso.

- Então pare de se condenar por isso.

- Pelo quê?

- Por estar fazendo tudo o que pode, ora!

O rosto dele se iluminou. Ele riu, dessa vez com um alívio que me causou alegria.

- Que bom que nos encontramos, disse ele.

- Estava demorando.

De novo nos fitamos, em silêncio. Ele se levantou para ir embora e me deu um abraço.

Fiquei sozinho na mesa presente, enquanto ele sumia no futuro.

Me despedi de mim, e sorri.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O aborto de cérebros

"Mas será que nem no Dia das Crianças vão parar de falar em aborto?", perguntava Tutty Vasques antes do dia 12 de outubro. O tema, que surge nos jornais somente como pretexto para sangrar este ou aquele candidato, mais uma vez tornou-se onipresente. O debate sobre o aborto inexiste, mas será que alguém está de fato preocupado com isso?

Como é de praxe neste blog, jogo limpo com os leitores. Sou contra a prática do aborto e contra qualquer legalização pura e simples que favoreça a banalização do tema. Mas o que tem me tirado do sério é a postura de boa parte dos evangélicos na hora de construir o país que queremos.

Não bastasse a cultura, o entretenimento e o modo de vida norte-americanos, agora também importamos o fundamentalismo religioso. O sincretismo que sempre foi (e ainda é) traço marcante da nossa nação permitia que as religiões convivessem no mesmo território. Não vou exagerar dizendo que o convívio demonstrava amabilidade ou admiração mútuas. Mas não havia uma animosidade à flor da pele, muitas vezes criando preconceitos onde não existia.

O problema é que, na mesma proporção em que a parcela evangélica crescia na população brasileira, surgiam seus desvios de conduta. Nada diferente do que já tinha ocorrido com os católicos e, se fizerem um levantamento nas religiões de políticos e líderes controversos ou questionáveis, veremos novamente o sincretismo brasileiro ali representado.

Mas o grande problema mesmo é que os evangélicos conseguiram acesso à concessões públicas de rádio e TV, possibilitando que o eco de suas palavras alcançasse mais e mais pessoas, direta e indiretamente. E uma das principais consequências disso é a ascensão de líderes e políticos com mentalidade de gueto, que têm como objetivo a supremacia evangélica sobre a sociedade. Se isso penalizar a construção de uma cidadania plena e igualitária, não estão nem aí.

A retórica desse pessoal é conhecida. Um de seus principais representantes é o pastor Silas Malafaia, que se transformou numa espécie de oráculo para evangélicos de todas as denominações, opinando sobre projetos de lei e opções políticas. A conciliação possível não lhe agrada. Efetuar palavras de ordem com supostos fundamentos bíblicos, com verve polemista, sim. O que ainda arrebanha mais gente para suas causas.

Isso não me pertence!

Anteontem, Dilma se reuniu com 50 representantes evangélicos para assumir o compromisso de vetar qualquer tentativa de legalização do aborto. É possível que ganhe os votos conservadores que perdeu em meio aos terrorismos virais da internet. Dá pra se ter uma ideia de como é a influência dessas lideranças no eleitorado evangélico.

O incrível é que eles exigem da candidata (fizeram isso com Serra?) um compromisso público e por escrito que não aprovará leis contrárias ao que eles querem. É isso mesmo: admitiram que querem privilégios e supremacia sobre o resto da sociedade. O que esses mesmos líderes diriam se uma comitiva homossexual fizesse o mesmo? Ou de umbandistas?

É um absurdo do ponto de vista democrático e cidadão e muito ultrajante para mim, cristão evangélico desde a infância, ver que são esses os líderes do rebanho brasileiro atual. Quero afirmar categoricamente que eles não me representam, e que há muitos com uma mentalidade cristã antenada com os tempos atuais, sem deixar de seguir o Evangelho de Cristo, e que nada têm a ver com essa corja.

É o pessoal dos Novos Diálogos, gente que segue a Trilha, que se diverte com o Pavablog e anda pelo Caminho da Graça, só pra ficar em alguns exemplos. Gente que não só crê num Deus Todo-Poderoso, como procura viver sabendo que Ele é Todo-Poderoso e pronto.

Os líderes que foram pressionar Dilma acham que suas leis, seus poderes terrenos e seus fundamentalismos que coagem tantos vão mudar valores, corações e atitudes. Estão errados, só Deus é capaz disso, e Ele não depende de nenhum arcabouço legal ou político para fazê-lo. Aliás, os passos de Jesus quando entre nós demonstram o oposto, denunciando o farisaísmo hipócrita.

Então, quando você vir a palavra evangélico em qualquer meio de comunicação, saiba que ela carrega um asterisco discordante do qual este blog é testemunha.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Três décadas 

Meu pai tinha 30 anos. Minha mãe tinha 30 anos. Aí eu comecei a surgir.

Minhas lembranças começam no jardim-de-infância. Em frente ao meu prédio em São Cristóvão esperava dois coleguinhas cujo pai dirigia um táxi e me dava carona. Um gibi da Turma da Mônica, a bolsa com meu nome costurado e uma lancheirinha foram meus primeiros companheiros de cotidiano.

Na escolinha fiz uma festa de aniversário com um bolo do Homem-Aranha. Todo dia minha mãe vinha me buscar. Ela sempre comprava um guarda-chuva de chocolate que eu comia no caminho de casa. No Natal, participei de uma encenação sobre a vida de Jesus. Fiz um legionário romano - a única vez em que usei saia na vida! Fora a ironia prévia de encarnar um perseguidor de cristãos.

Em 1986, descobri que não era só eu. Tinha mais gente que vinha dos meus pais, você acredita? Eu só acreditei quando vi minha irmã no berço. Um temperamento tão diferente, muitas brigas e risadas dentro e fora de casa, e sempre uma deixa pra fazermos palhaçada juntos.

Meus primeiros contatos com o futebol começaram em 1986. Na Copa, via as vinhetas do Araken na Globo e repetia em casa, pra toda a família. Ele se disfarçava e de repente se despia pra ficar com a roupa do Brasil. A camisa era uma bandeira estilizada (uma das mais bonitas que já vi), que minha mãe comprou uma igualzinha pra mim.

No mesmo ano meu avô me iniciava na seara rubro-negra. Aos sete anos ele estava na inauguração do estádio de São Januário, quando o Flamengo venceu o Vasco por 2x1. Ali ele deixou de ser vascaíno, pelo resultado e por ter achado bonito o uniforme vermelho e preto. Eu tinha seis anos quando vovô Nelson comprou uma revista Placar. Na capa, o título carioca do Flamengo em cima do Vasco.

Em 1987 conheci o Maracanã pela primeira vez. Claro, vovô Nelson me levou até lá. Vestido como um jogador de futebol da cabeça aos pés (meião e kichute incluído), estávamos na arquibancada. Flamengo 1 x 0 Bangu. Quase vi o gol de Bebeto. Quando veio o cruzamento, a torcida se levantou e eu, pequenino, só consegui ver a festa generalizada.

Também em 1987 comecei uma parte importante da minha história: todo começo de tarde eu me perfilava no pátio do Colégio Pedro II para logo subir para as aulas. Foram 11 anos que valeram por uma vida inteira, de tantas emoções sentidas. Ali conheci a literatura, a política, ouvi falar de sexo, decidi-me pelo Jornalismo, tornei-me cidadão e construí minha identidade.

Por falar em identidade, é impossível esquecer a Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, igreja frequentada por minha mãe desde que eu tinha um ano de idade. No batizado, lá estava eu no colo com um carrinho de brinquedo na mão, faceiro. Cresci religiosamente, aos 13 anos tive um encontro derradeiro com Cristo, descobri amigos, mentores e companheiros de jornada eternos.

Em 1992 escrevi um artigo sobre a morte de Ulysses Guimarães, numa gigantesca máquina de escrever Remington do vovô Nelson. Era um texto com um certo estilo, referências históricas ("Morre o Doutor Diretas") e um tom épico na despedida. Considero minha primeira matéria jornalística. Talvez bisavó de meus blogs.

Depois de uma série de redações com nota máxima na escola, aos 16 anos encontrei Fernando Sabino. Ele me encorajou a escrever crônicas. Parecia tão fácil pra ele, por que não tentar? Ganhei um computador e só mexia no Word. Foram muitos textos, ora copiando o estilo de Sabino, ora de Verissimo, até achar o meu lugar.

Em meio às paixões adolescentes, encontrei Carlos Drummond de Andrade. Ele me encorajou a escrever poesia. Parecia tão fácil pra ele, por que não tentar? E o que é melhor: seus versos não necessariamente rimavam, nem tinham métrica. Que liberdade! Ele foi meu terceiro avô.

Aos 18 anos fiz o primeiro vestibular. Mas só passei no segundo, no ano seguinte, na segunda reclassificação. Niterói entrou na minha vida graças à Universidade Federal Fluminense. Jornalismo. Não consegui marcar segunda opção em nenhuma das inscrições. Recentemente, quando minha esposa me perguntou o que eu seria se não fosse jornalista, emudeci por um bom tempo. "Já respondeu", disse ela.

Aos 23 anos encontrei Carolina. Ela já tinha me encontrado sete meses antes, e desde então não tirava os olhos de mim. Quando já tinha perdido as esperanças, olhei de volta. À beira do Aterro do Flamengo, nosso primeiro beijo. Um ano depois, a certeza de que éramos unidos de alma. Quatro meses depois, a proposta. Desde 2007, uma só carne.

Todo esse flashback me capturou hoje, quando faço 30 anos. Não estou me achando velho, não estou em crise, nem ansioso de realizar tudo que eu quero antes que seja tarde. Meu medo de sentir isso na data de hoje não se confirmou.

Só que hoje foi um dia muito, muito inesquecível. Logo às 7 da matina, meu pai me acordou para dar os parabéns. Pra completar, diz que me catou no Google e achou este blog. Leu vários artigos e, embora achasse os textos grandes, gostou. Meu pai, que NUNCA se aventurou pela internet! Foi um presentaço.

Ao chegar no trabalho, recebido com uma rede social de "Parabéns! Feliz aniversário!" ao vivo. E não era só isso. Assim como no dia que voltei de licença, um café da manhã comunitário pra comemorar. Assim como no dia que voltei de licença, não esperava.

Logo depois, minha mãe me liga e ora comigo ao telefone, numa das ações mais tocantes que uma pessoa pode fazer por outra. No almoço, Carolina me esperava para escrevermos mais um capítulo da história do Bar Luiz.

À tarde, outra surpresa no trabalho: um presente e um cartão personalizados. O fato de todos os aniversariantes terem recebido esse tipo de homenagem não diminui o significado do gesto. Ouvir os bastidores da busca pelo presente me emocionou.

No ônibus, voltando pra casa, não consegui me conter. Chorava de alegria pelo aniversário e por tudo o que me proporcionaram. Voltei às lágrimas sorridentes enquanto redigia essas linhas.

E pensar que ainda há mais 30 anos pela frente, ao menos! Mais 30 anos para escrever, mais 30 anos para amar Carolina, mais 30 anos curtindo meus amigos...

Fora os projetos que germinaram faz tempo e sabe Deus quando vão se realizar. Meus blogs vão virar livro? Meus documentários serão exibidos no Festival de Gramado? Meus alunos na faculdade de Comunicação vão gostar das minhas aulas? Meus filhos vão ser a minha cara? E vão ser flamenguistas? Etc etc etc...

São só 30 anos. E não é que parece?

domingo, 19 de setembro de 2010

Caminhando a gente se entende



Fiz questão de colocar no título do post o slogan da III Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa que o Lessa27 pôde acompanhar na data de hoje, em Copacabana. O clima era amistoso e o objetivo de ressaltar o respeito às diferenças parecia claro. Mesmo com os umbandistas e candomblecistas sendo maioria, a pluralidade de religiões estava representada.

Não é à toa que os representantes de religiões afro estavam em maior número. A explicação pode estar na vilanização desses grupos por parte dos evangélicos, flagrante em muitos de seus programas na TV aberta. Bem como a incitação à hostilização: episódios de templos afros atacados por evangélicos tornaram-se comuns nos últimos anos.

"Queremos que eles façam o que Jesus ensinou: amar ao próximo", disse o babalawo Ivanir dos Santos, principal líder da Caminhada. "Nosso país tem as religiões afro como parte de sua cultura, e elas devem ser respeitadas".

Diante desse contexto, difícil imaginar que os evangélicos pudessem dar as caras por lá. Mas eles compareceram.

Evangélicos perseguidos

"Somos minoria aqui, né?", reconheceu Amaury Fortes, da Igreja do Trem (de camisa preta, na foto abaixo). Eles estavam na caminhada para denunciar a perseguição que alegam sofrer pelo Estado. "Por medida judicial fomos proibidos de pregar nos trens do Rio de Janeiro. O Ministério Público entrou com uma ação, mas sequer fomos ouvidos".



Se a justificativa para medida fosse a tranquilidade dos passageiros ao diminuir as manifestações nos vagões, era possível compreender. Só que, segundo Amaury, quem tocar e cantar funk ou samba não será reprimido. "Mas se quisermos tocar música gospel, não podemos".

Evangélicos pedindo perdão

Um rapaz com luvas azuis de boxe tailandês nas mãos se destacava em meio aos participantes da Caminhada. Também estava com uma calça específica do esporte. Na camisa, a inscrição "Faixa preta de Jesus". Era o evangelista Sergio Eric, acompanhado do pastor Vagner Gonçalves. "Somos neo-pentecostais", ressaltava Sergio, sabendo que a confissão de fé soaria com mais impacto no lugar onde estavam.

Pertencentes ao Ministério Fogo Vivo, em Nova Iguaçu, eles mantêm um trabalho de recuperação de jovens delinquentes e viciados em drogas, também de combate à pedofilia. E o que estavam fazendo na Caminhada? "Queremos pedir perdão pelo preconceito que as igrejas evangélicas têm exercido contra outras religiões", continuava Sergio, num tom confiante e conciliador.

Evangélicos com visão cidadã

Os representantes da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, que organiza o diálogo interreligioso (do qual a Caminhada é um dos resultados), deram uma coletiva antes do evento. O Lessa27 conseguiu entrevistar alguns integrantes: dois anglicanos e um presbiteriano, vertentes evangélicas tradicionais.

O bispo anglicano Filadelfo Oliveira explicou que, indepentemente das diferenças que existam entre as religiões, elas devem ser respeitadas na expressão da sua fé. "Está no ethos da igreja anglicana ser ecumênico, interreligioso, com respeito à dignidade humana", contou Celso Franco (de estola preta), bispo emérito. "Nós nos sentimos em casa aqui".

"Quando sou pastor e vejo pessoas discriminarem outras, sou impedido de concordar com isso. Ainda que não me alinhe nas convicções de fé, não posso dar as costas. É por isso que estou aqui", conta Marcos Amaral, pastor presbiteriano.


Questionado se a Caminhada não corria o risco de ser apenas uma reação à hostilização religiosa, prorrogando assim o clima de conflito, Marcos refletiu sobre a visão missiológica da igreja evangélica. "Temos um versículo-chave que é o 'Ide por todo o mundo e pregai o evangelho'. O evangelho são boas novas, boas notícias. Se você está sendo perseguido, se seu santuário é destruído por terceiros, se seus filhos estão sendo humilhados na escola e alguém, que não professa a mesma fé que você, se levanta para te defender, isso é evangelho, é boa notícia".

"Temos que ir, mas não podemos impor nada. Jesus nunca veio impor. A igreja evangélica ainda não entendeu isso, e assim ela é conduzida ao conflito. Eu estou aqui para defender o direito dessas pessoas expressarem a sua fé, não estou concordando com essa fé", completou.

A cara do Brasil?

Embora a Caminhada fosse em defesa da liberdade religiosa, outros grupos estiveram presentes em Copacabana. A Igreja Reformada Ecumênica, apesar do nome, trazia na camisa a frase "Deus não tem religião". Maçons e ciganos (que não são uma religião, mas um grupo étnico) também apareceram.

A Caminhada teve uma participação expressiva, cerca de 150 mil pessoas. Em determinado momento quase toda a Avenida Atlântica estava preenchida. O que me veio à cabeça é que, mesmo com os episódios de intolerância registrados, fica difícil imaginar esse tipo de manifestação, de forma tão pacífica, em outro país.

Pude confirmar que a pluralidade religiosa, com doses de sincretismo, é algo tipicamente brasileiro. E que o crescimento evangélico, aliado à propriedade de meios de comunicação de massa, já começa a perturbar essa ordem, em todos os sentidos.

Porém é inegável que participar da Caminhada reforça o sentimento de comunidade tão necessário, ainda mais nas metrópoles. Qual o problema de pessoas tão parecidas com você expressarem uma fé diferente? E por que a simples convivência não pode coexistir com discordâncias? Não é assim em qualquer família?

Acompanhe abaixo mais retratos da Caminhada:


Ivanir dos Santos (de azul) e demais representantes da Comissão
de Combate à Intolerância Religiosa iniciam a Caminhada




Igreja Renovada Ecumênica 



 Eclair Heleno, grão-mestre da loja maçônica da Penha


Marino Novato, experiente em artesanatos de cultura afro


Mãe Francisca entrou na roda... da política

  
Emanuela e Ricardo Vacite, ciganos


O papa falou e disse

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Até que existe almoço grátis

"Todo mundo é ateu até passar por um grave problema de saúde". A frase de Millôr Fernandes resume bem, como só o bom humor é capaz, um comportamento universal. As divindades podem até variar - o genérico "força superior" vem a calhar, sem exigir muita profissão de fé. Mas é no meio do perrengue que o sobrenatural que pode nos socorrer é levado mais a sério.

Os crentes podem se desarmar da empáfia do "eu já sabia". Nós que cremos no Todo-Poderoso não raro agimos como se tal alcunha fosse um mero adereço de Deus. É fácil cair na tentação de querer ter tudo sob nosso controle, por vezes exigindo até que Papai do Céu nos obedeça, senão eu choro. Faça o que eu digo, mas não faço o que eu digo.

Aí a gente se percebe em situações sem saída e episódios que sublinham nossas óbvias limitações. Flagramo-nos fracos, frouxos, desanimados e derrotados. O monstro varia de tamanho e alcance, mas pode nos acossar simplesmente nos expondo como somos. Nossa majestade nua perante nós mesmos, destacando o ridículo de se pensar autossuficiente.

Lembro das palavras do super-apóstolo Paulo. "Quando sou fraco, então é que sou forte". Em carta à igreja de Corinto,  lista as dificuldades pelas quais passou, incluindo um "espinho na carne" que o levou a pensar no assunto. E, por tabela, mostrando que a soberba é sempre um tiro no pé, e de olhos fechados.

Com a deixa de seus percalços, Paulo fala da graça de Deus. Graça: favor que não merecemos, mas que nos é concedido "de grátis" por Ele. Mas por quê? Ora, não tem explicação. É um favor, de graça, e ainda tem que justificar?

Paulo ao menos expõe um raciocínio: Deus explica o espinho na carne. "A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza". Então o apóstolo diz que sente prazer na fraqueza, para que possa saborear essa graça de Deus na sua vida. Enxergar as limitações significa se dar conta dessa Presença.

Prazer na fraqueza? Não é bem uma fruição, tampouco masoquismo. Porém se dar conta de que ser limitado não é o fim, mas o começo de uma nova perspectiva, tão palpável quanto a fé pode proporcionar... Se não me sentisse fraco, a solidão raivosa seria o meu pior castigo.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

As lições da licença - parte 2

Se por um lado ficar no estaleiro por dois meses me trouxe reflexões socio-políticas, por outro me ajudou a enxergar a loucura do cotidiano com muita sanidade. Determinadas atitudes que fui forçado a encampar enquanto machucado valeram como um retiro quase espiritual.

Com o gesso e duas muletas - era proibido pisar com o pé ruim - a tarefa de me levantar da cama ou do sofá passava longe de ser das mais simples. Requeria força para me sustentar desde o primeiro impulso. E muita disposição para levar a cabo o que eu tinha em mente. A única opção era ser perseverante naquele objetivo, ainda que não estivesse nas condições ideais, ou então não sairia do lugar.

Percebi também que era uma roubada completa retornar à cama e ter esquecido alguma coisa, ou de fazer algo. O cansaço dificultava que eu levantasse novamente. Precisei incorporar um detalhado planejamento de tudo o que precisava fazer antes de começar a saga. Isso valeu até para voltar a andar na rua. Mochila nas costas, muleta na mão e um árduo percurso entre o banco, o metrô, o médico e muito, muito suor. Deixar uma etapa de lado era um dia perdido.

Retornei ao trabalho, com as responsabilidades que me cabem e a restrição de horários: resolver coisas e pagar contas, só na hora do almoço ou à noite. E não tem como voltarmos nos mesmo ritmo. Fora as informações nas quais é preciso ser atualizado, saí de um estado de letargia que meus colegas não passaram nos últimos meses.

Mas é incrível como a inércia é um princípio da Física que se aplica ao nosso estado emocional. Lembra quando estamos no ônibus, ele dá uma freada e você continua na velocidade anterior, quase batendo o seu nariz no banco da frente?

Assim acontece no cotidiano. A gente entra na onda de um monte de pseudo-urgências, encara uma sequência de tarefinhas como uma epopéia em que está em jogo nosso sucesso, vê monstros que na verdade não passam de uma revoada de insetos mesquinhos... Peraí, é isso que me tira o sono tantas vezes durante o ano?

A inércia também me possibilitou perceber essas coisas porque o meu "ônibus" estava avariado por dois meses, e agora retorna ao tráfego em câmera lenta, reparando em todos os seus exageros. O esforço para não reforçar o quadro se renova. Bom mesmo é não exagerar na dose.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

As lições da licença - parte 1

Enfim minha licença médica chegou ao fim! Agora a tarefa é me readaptar ao cotidiano de trabalho e regular o zoneado relógio biológico. Sim, pois o sono resolve dar as caras quando menos espero. Ele estava acostumado a mandar em mim até altas horas da manhã e agora estranha o domesticamento.

Acho que só agora, depois de dois meses de stand-by, consigo encontrar respostas para o que minha mãe me perguntou durante esse período: "Já dá pra tirar um saldo positivo dessa situação?". Se não fosse minha genitora expressando sua preocupação, teria julgado a pergunta um tanto sarcástica. Eu não conseguia, naquele momento, ver propósito nenhum na fratura cacete de um metatarso, que tanta imobilidade me causava.

Hoje percebo quais foram as lições que a licença me deixou. A principal delas foi perceber como nosso mundo não está preparado para inserir os portadores de necessidades especiais. E me remeteu a um projeto de lei de um senador da república.

As calçadas esburacadas passam despercebidas para quem anda em sua plenitude física. Mas são um suplício para quem não pode pensar num mínimo tropeço, sob pena de dar com a cara no chão. A falta de rampas transforma o meio-fio num degrau potencialmente traiçoeiro. Estações de metrô sem escada rolante são um exercício de paciência. Subia muleta por muleta num desenho lógico.

Do alto de meus 29 anos, fiquei imaginando idosos ou demais portadores de necessidades especiais sem força nos braços para vencer essas dificuldades. A disposição necessária para fazer as coisas mais simples do cotidiano, e ainda contar com a compreensão dos demais. Pegar um ônibus, dependendo do motorista, é um esporte radical.

Na minha cabeça, assim como no atendimento ao público, pensava: todo mundo tinha que passar por isso um dia. É uma experiência que cauteriza a sensibilidade para a questão no mais tacanho dos cidadãos. Daí para imaginar que nossos políticos precisavam de um "estágio" assim foi um pulo...

Então lembrei do senador Cristovam Buarque. Obcecado pela educação, o parlamentar do Distrito Federal apresentou no ano passado um projeto de lei que obriga os filhos de autoridades eleitas pelo voto a estudarem em escola pública. O objetivo, claro, é fazer os responsáveis pelo país sentirem na pele a realidade do ensino público brasileiro. Uma vez provado esse gostinho, é possível que cuidem melhor de nossas escolas e professores.

Apliquei o mesmo princípio à minha situação. Nossos representantes deveriam ficar uns dois meses em cadeiras de rodas pra perceber as dificuldades que um portador de necessidade especial encara todo dia. Talvez assim pensassem numa política de acessibilidade total ousada na medida que deve ser. E com a prioridade que os portadores merecem, em vez de ficarem esperando migalhas filantrópicas ou interesseiras.

Pode ser otimismo demais da minha parte esperar que a insensibilidade política seja quebrada assim tão simples. Certo é que um metatarso me ajudou a enxergar melhor a questão, provocando o desejo de ajudar. Já começo por essas linhas, esperando combater a indiferença de quem, como eu, não costuma passar por privação física.

(Foto: Nelson Perez / Divulgação)

sábado, 21 de agosto de 2010

Os esdrúxulos são inocentes

Começou o horário eleitoral gratuito, e já circulam pela internet vídeos e ficha de inscrição eleitoral de candidatos bizarros ou que não estão muito certos do que fazer num cargo público. Você já deve ter recebido uma lista dessas. A minha mostrava Tiririca, Mulher Pêra e Ronaldo Esper.

A revolta toma conta dos eleitores. Há quem se pergunte se foi pra isso que retornamos à democracia, deixando no ar uma leve nostalgia fascista. Ora, será que o sistema democrático é o culpado de tais elementos se atreverem a legislarem sobre nosso país?

Não. Os responsáveis são os partidos que bancam suas candidaturas.

Isso foi apontado pelo deputado Chico Alencar em seu twitter, e gostaria de desenvolver esse aspecto aqui. Qualquer um pode chegar num diretório de um partido e dizer que quer se candidatar. Todos têm esse direito, até analfabetos. Mas é a legenda que vai permitir que a candidatura se concretize e que o dito cujo corra o risco de nos representar em Brasília.

Não estou exortando que haja discriminação. Mas será que os candidatos esdrúxulos concordam com os ideais dos partidos aos quais se filiam? Ou: os partidos apresentam uma base sólida e autêntica em seus idéarios para servir de referência e provocar a identificação dos aspirantes a candidatos?

E ainda: esses candidatos estão preparados para uma possível vitória, no que tange a direitos e deveres do congressista, bem como sua responsabilidade sobre os destinos da nação? Sabem como é o dia a dia da Câmara, do Senado, do Poder Executivo? Os partidos, ao autorizar as candidaturas, chancelam que sim.

Li na revista Piauí uma matéria sobre o Supremo Tribunal Federal, a instância máxima do Poder Judiciário. Ali vi a informação que cada ministro do STF, após ua indicação, tem o seu nome levado ao Senado, para ser aprovado ou rejeitado.Veja bem: o integrante da mais alta corte judiciária do país tem o seu nome avalizado pelos senadores.

Visualizei logo Wellington Salgado, Gim Argello e outros integrantes do Senado no mandato atual fazendo esse papel... Sem contar o sem-número de leis que destinam milhões de reais de impostos para os mais diversos fins. Um esdrúxulo poderá decidir isso um dia, é só ser eleito. E pra ser eleito, tem que ser registrado como candidato. Para conseguir um registro, deve ter o nome aprovado pelo partido.

Podemos (e devemos) rir e expôr o ridículo de termos tantos candidatos bizarros pedindo o nosso voto. Mas não podemos esquecer que eles são inocentes pelo fato de conseguirem se candidatar. Canalizar a raiva perguntando aos partidos por que admitem essa situação é o melhor remédio.

sábado, 14 de agosto de 2010

A vida em stand-by

Lá estava eu na sala de espera do ortopedista, muletas à mão, pé engessado e assistindo ao Bom Dia Brasil. A matéria falava sobre economia de energia. Mostrava como os aparelhos que ficam em stand-by (com aquele pontinho vermelho piscando enquanto desligados) aumentam nossa conta de luz. Numa fatura de 150 reais, 30 era só do pontinho.

Não era novidade pra mim. Faz tempo coloquei um filtro de linha na minha sala, e sempre à noite desligo num só interruptor a "chave geral" da TV, do DVD, do receptor de TV a cabo e do videogame. O assunto tomou nova forma pra mim e já lhes digo o porquê.

Chegando aos 30 anos você não joga (ou não deveria jogar) futebol com a mesma vontade dos 18. Assim estava eu numa pelada, correndo quando tinha que correr, sem fazer loucuras em nome de um hobby agradável. Logo no começo do jogo a bola passou pela minha frente, fui atrás, e deslizei na grama até uma mureta que delimitava o campo, na linha de fundo.

Impossibilitado de pisar, rumo à emergência, raio-x: fratura do quinto metatarso, osso que é a continuação do dedo mindinho. Tratamento: não tocar o pé no chão, gesso e muletas por pelo menos um mês. A semana de férias que me restava foi-se embora.

Quem já passou por isso sabe dos pesares. Para mim o pior foi a falta de autonomia. Uma série de coisas que fazia sozinho agora dependia sempre de alguém ou de uma situação especial para realizar. Se dominava o equilíbrio com o pé que restava, as mãos não poderiam sair das muletas. Limitado e exilado dentro da minha própria casa, pois sair à rua era um grande sacrifício.

Após uma cartela de antiinflamatórios, nada mais eu teria a fazer a não ser... esperar. A cura viria com o tempo, e a cicatrização de um osso é chata que só. Não poderia curtir as férias, passear, voltar ao trabalho, fazer compras, correr, bater perna pro que fosse preciso. Insuportável.

A recuperação durou mais de um mês. Cada ida ao médico era uma renovação de esperanças para a alta, mas um novo raio-x dedurava que a fratura diminuía, mas não cicatrizava. Nada a fazer, só esperar. A vida em stand-by.

Não estava trabalhando, seria menos estresse em potencial. Não estava cheio de tarefas, sobra de tempo para ler, escrever, acompanhar a Copa. Não poderia assumir compromissos e nem ser cobrado pelos que já assumira, pressões a menos. Aparentemente, uma grande economia de energia e tensão.

Mas mesmo nesse estado, hibernando contra a minha vontade, o corpo e a mente falam. Reclamam da inércia, da impossibilidade, frustram-se com expectativas não atendidas, catalisam a ansiedade. O coração se angustia por não realizar desejos antes tão fáceis e singelos, como ir à geladeira. Desgaste.

A vida em stand-by enquanto os meses passam e não posso voltar à ativa. Além de nos desacostumarmos com o ato de esperar, fazer mil coisas ou não fazer nada é um detalhe, o que nos derruba é a falta de liberdade. Mais um episódio para valorizá-la.

O pontinho vermelho ilude o dono da casa e continua puxando a energia. Quanto a mim, sem mais ilusões, espero o dia de voltar.


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Quando a Fórmula 1 encontra a política


Em 2002 os fãs de automobilismo ficaram estarrecidos com o jogo de equipe da Ferrari, ordenando que Rubens Barrichello cedesse a vitória a Michael Schumacher na hora da bandeirada final. Choque que se repetiu em 2010, quando Felipe Massa cedeu a liderança a Fernando Alonso, também cumprindo ordens ferraristas.

Sobre o episódio deste ano, o próprio Schumacher opinou que a manobra deveria ter sido mais sutil. Entre os torcedores, houve quem dissesse que Massa poderia "mascarar" a entrega da posição simulando que Alonso o ultrapassou por estar mais veloz, em vez de escancarar a situação abrindo passagem.

A diferença entre uma manobra às claras e outra mais sutil tem paralelo com recentes episódios de cerceamento da liberdade de imprensa no Brasil, principalmente na fiscalização dos eleitos para cargos públicos. Embora há quem argumente que a censura no país não exista, ou seja apenas um "fantasma" comparando com a época da ditadura militar, episódios recentes mostram que não é bem assim:

- A censura prévia ao Estadão completou nada menos que um ano, e prossegue. Mais de 365 dias sem poder publicar nada a respeito do deputado Fernando Sarney, e durante esse tempo todo o mérito do processo não foi julgado;

- O Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso do Sul proibiu o jornalista Nilson Pereira de publicar matérias sobre o senador Delcídio do Amaral (PT). Se descumprir a decisão, o jornalista terá que pagar multa diária de R$ 10 mil;

- O mais recente (e insólito) episódio é a restrição - eufemismo para censura - a emissoras de rádio e TV na representação dos candidatos. Elas não poderão realizar efeitos em áudio ou vídeo com a intenção de ridicularizar ou beneficiar algum candidato, partido político ou coligação. E isso vale para telejornais, programas de entretenimento, novelas e humorísticos.

A justificativa do último exemplo citado é emblemática: por serem concessões públicas, as emissoras devem tratar os candidatos de forma igualitária. Pelo visto, a Lei Eleitoral só considera que os candidatos são tratados de maneira diferenciada se são alvos de comédia. Desatinos e preferências editoriais na cobertura dos fatos? Não é com eles.

Mas é curioso que a Lei Eleitoral seja tão dura com o humor e nada diga a respeito de políticos que são donos de meios de comunicação. A rigor, isso também não poderia acontecer, e é óbvio que tal situação impede que as emissoras tratem igualitariamente os candidatos. As concessões são públicas, e se têm dono, isso é contra a lei.

Todas as situações narradas são flagrantes de censura à imprensa, às vezes de maneira mais sutil ou dissimulada, mas sempre censura. Hoje não há um funcionário do Poder Executivo nas redações para intimidar com sua presença e com o poder do veto. A intimidação está mais sofisticada e covarde, por não permitir que um trabalho investigativo sequer venha à luz, em vez de contestá-lo uma vez publicado.

Para os torcedores, não há diferença entre o Barrichello de 2002 e o Massa de 2010. Assim como não há diferença entre a censura militar nos anos de chumbo e a censura prévia do Brasil democrático. Em todos os casos, quem sai perdendo é quem sustenta todo o "circo", com sua torcida e seus impostos: o cidadão.

sábado, 31 de julho de 2010

A (des)ordem pública - episódio 2



"Grande arraiá nos dias 16, 17 e 18 de julho" dizia a faixa sobre a praça perto de casa. Comentei logo com minha esposa, já que adoramos festas juninas e seus quitutes, além de morrer de rir ao ouvir o pagode russo ("Mas eu sonhei que estava em Moscou..."), um clássico da ocasião.

Na sexta, dia 16, as barracas estavam prontas desde cedo e a partir das 15h começou a festa, com a venda das comidas, bebidas e fichas para pescaria e afins. O locutor, que parecia o organizador da festa, agradecia ao Lions Clube da Tijuca pelo patrocínio e apelava para que os moradores saíssem de suas casas e prestigiassem o arraiá.

As músicas juninas tocavam direto no sistema de som, numa ótima seleção: Luiz Gonzaga, Geraldo Azevedo, Elba Ramalho. E num volume natural para alcançar toda a praça sem importunar os moradores. Até dava pra ouvir lá de dentro, mas nada que fosse absurdo. "Morar de frente tem seus problemas...", pensei eu.

Mas a partir das 18h um pseudo-grupo de pseudo-forró, que cantava tudo menos forró, subiu ao palco montado na praça. Não dá pra exigir que a trilha sonora seja do meu gosto, mas o volume aumentou "surdamente"! Conversar dentro de casa virava um sacrifício, o que só se comprovou com a chegada de um casal de amigos. Fiquei imaginando os idosos do meu prédio diante daquele inferno auditivo.

Sabe quando você fica meio rouco depois de uma happy hour com os amigos num local barulhento? Assim eu começava a ficar, dentro da minha própria casa. Com um princípio de dor de cabeça e sem conseguir prestar a atenção devida às notícias da viagem que meus amigos tinham acabado de fazer.

Não me restou outra alternativa senão ligar para a polícia. Anotaram minha queixa do volume alto e disseram que iam repassar ao batalhão, que enviaria uma viatura para averiguar. Sem a menor confiança naquela conversa, desliguei. O som alto foi até meia-noite, hora em que os "artistas" se despediram.

No sábado, para que nada se repetisse, liguei novamente para a polícia.

- Ontem houve uma festa junina que vai se repetir hoje, e o som está alto demais, é uma área residencial...

- Onde é a festa junina?

- Na Praça X.

- Só um minuto... Olha, esse evento é autorizado pela Prefeitura, então até as 22h eles podem usar o som. Deve até ter uma viatura lá acompanhando.

- Mas está alto demais, além do normal. Não há nada pra fazer além disso?

- O senhor pode ligar para a Prefeitura e pedir para medirem os decibéis, pra ver se está fora do normal.

Ligando para a Secretaria de Ordem Pública:

- Ontem houve uma festa junina que vai se repetir hoje, e o som está alto demais, é uma área residencial...

- O senhor tem que ligar para a Patrulha Ambiental, eles é que têm o medidor de decibéis.

Ligando para a Patrulha Ambiental:

- Não, nós não temos o medidor de decibéis. O senhor deve ligar para o telefone de denúncias de poluição sonora.

Liguei pra lá, chamou e ninguém atendeu. À noite, o som estava mais baixo - talvez outros moradores tenham reclamado também. No palco, o locutor reforçava: "queremos agradecer ao Lions Clube da Tijuca, por essa festa maravilhosa. E também ao deputado Julio Lopes, o homem do Bilhete Único, e que vai trazer a estação Uruguai do metrô pra gente!"

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A (des)ordem pública



O Conversa Fora e a conversa fiada

Conto agora um episódio que pode ser emblemático sobre a tal da ordem pública que a Prefeitura do Rio declara resguardar com afinco. Testemunhando o zelo com que a gestão Eduardo Paes tem exterminado os "puxadinhos" do comércio (quando os restaurantes avançam sobre as calçadas para logo permanecerem ali eternamente), resolvi fazer minha parte como cidadão. Não moro no Leblon, mas quem sabe dá certo?

Perto da minha casa há o restaurante Conversa Fora, ideal para assistir a jogos do pay-per-view que não pago. Mas só pra isso, pois o serviço é ruim, o chope é aguado e o bolinho de "batatalhau" custa os olhos da cara. Não bastasse tudo isso, resolveram entrar na onda dos "puxadinhos".

Primeiro, o restaurante colocava cadeiras e mesas na calçada à noite, deixando apenas uma faixa menor para a passagem dos pedestres. Retiravam tudo de dia, permitindo que o espaço da esquina voltasse ao normal.

Até que um dia percebo um toldo branco, tal e qual um guarda-sol gigante, aparafusado no chão. Abaixo dele, e de maneira permanente, as mesas e cadeiras. É questão de tempo colocarem canteiros em volta, para deixar a ocupação ainda mais inevitável.

Inspirado pelo meu amado prefeito, resolvi ligar para a Secretaria de Ordem Pública, no telefone indicado no site:

- Guarda Municipal, bom dia. (A GM é que realiza operações contra os "puxadinhos" para a Secretaria)

- Oi, gostaria de denunciar um restaurante que está ocupando a calçada com mesas e cadeiras.

- A ação está acontecendo agora?

- Na verdade, já faz tempo que instalaram um toldo, com as mesas e cadeiras ficando na calçada de forma permanente.

- Ah, então o senhor deve ligar para a Administração Regional da Tijuca, para ver se o restaurante tem autorização para fazer isso. Nós só atuamos quando o estabelecimento não é autorizado e no momento em que está ocorrendo a ação.

Ligando para a Administração Regional:

- Olá, liguei para a Secretaria de Ordem Pública para denunciar um restaurante que estava ocupando mesas e cadeiras na calçada. Eles me orientaram a, antes de denunciar, ligar pra vocês pra saber se o estabelecimento tem autorização pra fazer isso.

- Ah, mas isso não é conosco. O senhor tem que ligar para o departamento de Licenciamento e Fiscalização. Eles é que podem te dar essa informação.

Persisti, querendo colaborar para a ordem de nossa cidade. Ligando para o departamento:

- Olá, liguei para a Secretaria de Ordem Pública para denunciar um restaurante que estava ocupando mesas e cadeiras na calçada. Eles me orientaram a ligar pra a Administração Regional pra saber se o estabelecimento tem autorização pra fazer isso antes de denunciar. A Administração falou que vocês dão essa informação.

- (Surpreso) Olha, nós não podemos dar essa informação pelo telefone...

- E como eu posso fazer essa denúncia? A Secretaria de Ordem Pública me disse que preciso saber dessa informação.

- O senhor pode ligar para a Ouvidoria ou pode vir aqui pessoalmente registrar o pedido.

- Ok, me dá o telefone da Ouvidoria...

- Só um minuto... Mas vem cá: onde é esse restaurante que o senhor está falando?

- Na esquina das ruas X e Y...

- Mas qual é o restaurante?

- Conversa Fora.

- Ah, eles têm autorização sim...

- Mas você acabou de me dizer que não pode dar esse tipo de informação pelo telefone!!

- (Sem graça, e desconversando) Peraí, vou dar o telefone da Ouvidoria...

No final das contas, mandei a foto do restaurante e um resumo do ocorrido para a coluna do Ancelmo Gois, na intenção de fazer barulho e ver se acontece alguma providência. Curioso é ver uma Prefeitura tão ciosa da ordem pública e instando os cariocas a fazer o mesmo, mas não estando preparada para fazer um simples atendimento telefônico de denúncia.

Mas se fosse no Leblon...

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A PRAÇA

Hoje moro em frente a uma praça. Ela é arborizada, possui uma pista de corrida, aparelhos de ginástica, bancos, brinquedos para crianças. Fica no meio de quatro ruas, e valoriza todo o entorno. É uma praça que está sempre cheia de gente, de vez em quando há feirinhas, aulas de tai-chi-chuan, eventos em feriados e por aí vai.

Acabei de rever dois documentários sobre dois grandes artistas brasileiros: Chico Buarque e Oscar Niemeyer. Filmes que, cada um a seu jeito, me lembraram que a praça que eu gostaria de visitar é bem diferente da que estou acostumado a ver.

No momento em que Chico explicava sobre a encenação musical de "Morte e Vida Severina", no teatro de Nancy, na França, sua voz narra os fatos em cima das imagens dele mesmo passeando pela praça da cidade. Ampla, cercada por prédios baixos e com apenas um monumento ao centro:


Imediatamente me lembrei da Praça São Pedro, na Itália, aquela vastidão de horizonte no meio da cidade, cercada de longe pelos prédios do Vaticano, com um bom espaço para se percorrer andando:


E aí vejo Niemeyer contando como criou seus projetos, de onde vinham as ideias, até chegar à Praça dos Três Poderes, em Brasília. Ele comenta como o projeto foi criticado pelo fato de ser uma praça sem árvores, grande daquele jeito etc. Assim como eu estou acostumado com a pracinha em frente à minha casa, os críticos ainda não estavam acostumados às invenções do arquiteto:



Então ele explicou sobre a necessidade da praça evidenciar a arquitetura em volta, que Niemeyer considera como a arte composta naquele espaço. As árvores trariam sombra, é verdade, mas também esconderiam e limitariam aquela vastidão. E percebi que o princípio também vale para as praças de Nancy e de São Pedro.

Fora a explicação, meu gosto pessoal vai pelo mesmo caminho. Tenho muita vontade de visitar todas essas praças por elas terem preservado algo que a metrópole nos surrupiou faz tempo: o horizonte amplo urbano, puro e simples. O aproveitamento do espaço sem a necessidade de se construir nada nele, apenas a permissão andarilha e contemplativa.

Vivemos tão apertados e tão acostumados à falta de espaço, fruto de visões igualmente estreitas, que essas praças parecem nos lembrar que bom é um simples passeio a pé, sem nada a nos obstruir o caminho.

Isso tem afetado até a moradia: apartamentos minúsculos são vendidos tão somente porque a ganância imobiliária quer colocar o máximo de opções no mesmo andar, saturando o espaço, matando o respiro. Quem vive sem respirar?

Portanto, completo meu roteiro de viagens futuras: Roma (já estava, há séculos), Nancy e, acreditem, Brasília.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Não nos esqueçamos da desproporção

Além dos jogos e das arbitragens da Copa do Mundo, aqui no Brasil outro assunto habita as rodas de discussão: a relação entre o técnico Dunga e a imprensa. A situação chegou a tal ponto que as discordâncias, regadas a ódio, são publicamente assumidas por ambas as partes. Correndo o risco de terem seus respectivos compromissos profissionais prejudicados por tais atitudes, ainda assim nenhum dos lados "baixa a guarda".

Se o ditado afirma que "dois bicudos não se beijam", ele se aplica perfeitamente a Dunga e à imprensa. Com a diferença que o técnico seria um pequeno beija-flor e a gama de veículos de comunicação cobrindo a Seleção, um tucano misturado com gavião.

Antes de entrar na polêmica atual, uma retrospectiva. Em nosso país, apaixonado por futebol, é comum escolhermos um único culpado pelas derrotas da Seleção em Copas do Mundo. Foi assim com Barbosa em 1950, Cerezo em 1982, Zico em 1986, Roberto Carlos em 2006... Nesse momento, o detalhe que o esporte é coletivo é solenemente deixado de lado.

O fiasco da Copa de 90, na Itália, com o Brasil apresentando uma equipe desunida, em briga com o patrocinador e jogando um futebol feio e nada confiável, foi colocado sobre os ombros de apenas um jogador. Foi a chamada "Era Dunga".

Mas chamada por quem, cara pálida? Se existe na sociedade brasileira um messianismo latente (desde os tempos de Getúlio Vargas), também ocorre a eleição automática do Judas Iscariotes da vez. No entanto o consenso só se solidifica e permanece através dos tempos devido à massificação da imprensa, que é diária, quase onipresente e que raramente admite seus erros e excessos.

Não se sabe quem inventou a expressão "Era Dunga". Mas desde então ela é sintomaticamente repetida pela cobertura esportiva, colaborando mais uma vez para estigmatizar um jogador por toda a vida. Ninguém comenta que Barbosa foi um dos melhores goleiros que o futebol brasileiro já teve, mas todos têm na ponta da língua o discurso para culpá-lo pelo Maracanazzo.

Dunga não foi craque como Barbosa, mas nem ele nem ninguém merece ser marcado por um fracasso que foi, não se esqueçam, coletivo: da presidência da CBF ao terceiro goleiro (Já dá pra imaginar onde nasceu o, digamos, desprezo de Dunga pela imprensa esportiva, certo?).

Eis que Dunga ressurge como capitão do tetra em 94, levanta a taça e, diante de todo o mundo, desabafa contra a imprensa: "Fotografem essa porra! Fotografem essa porra!". Para todos os efeitos, ali estava automaticamente suspensa a Era Dunga - ou, ao menos, ela deveria ser atualizada com o desfecho vitorioso.

Mas Dunga agora reaparece como técnico da Seleção e, além de assumir que busca o futebol de resultados, ganha carta branca da CBF pra trazer de volta a seriedade e o comprometimento dos jogadores com a Seleção. (O fato da imprensa não ter feito críticas às farras da Copa de 2006 e depois espinafrar os jogadores que não classificaram o Brasil é mero detalhe. Ah, e também engrossaram o coro do comprometimento).

E Dunga vai obtendo os seus resultados, encampando a máxima de que os fins justificam os meios. Ganha a Copa América, a Copa das Confederações, vence grandes seleções jogando bem, classifica o Brasil para a Copa do Mundo. Para isso, adota a metodologia do "grupo fechado" e, claro, não dá a mínima para a imprensa.

Pelo contrário, comete até o pecado mortal de cercear liberdades da Rede Globo em suas reportagens exclusivas com os atletas, a despeito da programação da comissão técnica. Aí começam as primeiras ondas de "Fora Dunga", que trouxe episódios ridículos. A CBF, como é de praxe, fez que não era com ela e deixou o esquentado técnico como um ótimo para-raio.

Diante disso, Dunga poderia simplesmente tocar seu trabalho e não se estressar muito com a chiadeira da imprensa. Mas não: passou a ralhar, rebater, xingar, fechar treinos, restringir o acesso. O direito de tocar seu trabalho do jeito que decidir (a despeito de concordarmos ou não) passava a ser questionado em virtude de seu mau humor com os jornalistas.

E assim vai ser até um dos lados ceder ou mudar o disco. Dunga não esquece o que a imprensa fez com ele, e o filme da "Era Dunga" volta a seu cotidiano, renovando o rancor e cegando-o às possíveis críticas que possam ajudá-lo. A imprensa, por sua vez, elege o mau humor do técnico como um grave problema nacional, mas nada faz para trabalhar de outra maneira diante das dificuldades apresentadas, e não reflete se está exagerando ao insistir na chiadeira.

Mas não podemos esquecer a desproporção: Dunga é um só, e é uma pessoa identificável. A imprensa é multifacetada, plural e não se personifica em ninguém. Logo, é muito mais fácil para a torcida saber em quem tacar pedras quando tiver vontade.

Dunga precisa repensar se é a melhor estratégia comprar briga a torto e a direito. E a imprensa não pode se esquecer que sua contribuição para a demonização massificada pode ser determinante para a vida pessoal dos envolvidos. Estão aí os casos da Escola Base, Wilson Simonal e tantos outros para comprovar.