segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

Chico, Tom e Vinicius

Pode parecer escapismo, mas não é. Assim como, diante das torrentes que tentam nos submergir e é preciso vir à tona, tomar fôlego e renovar as energias para prosseguir, é alento para um coração brasileiro assistir ao especial sobre Chico Buarque e Tom Jobim, exibido pela Bandeirantes no fim do último domingo. Da mesma maneira o documentário "Vinicius", ainda em cartaz nos cinemas, sobre um dos principais parceiros de Tom, o poeta Vinicius de Moraes.

Sim, nosso país está em meio a mais uma crise, não podemos sequer por um minuto descolar os olhos dos políticos, somos assolados por violência explícita e implícita, e não sou eu quem vai incentivar aos leitores deste blog a esquecerem a realidade. Mas para enfrentar os desafios de nosso tempo é preciso memória. É preciso história, principalmente do que vale lembrar, do que tem valor, do que também é Brasil.

Chico, Tom e Vinicius são Brasil. São brasileiros como eu, e isso me enche de um orgulho maior do que a vergonha pelos desalinhos sociais. Não excluo nem o orgulho nem a vergonha, mas é hora de sublinhar o que já é fato: sou feliz por ter como expoentes de minha cultura nacional Chico, Tom e Vinicius.

O especial foi fantástico, ainda que simples: tão somente clipes de alguns bastidores e shows, intercalados com depoimentos recentes de Chico. E bendita seja a mídia, eu que tanto a critico: seus aparatos permitem imortalizar quase ao vivo a vida de quem já se foi e não era pra ter ido. Posso ver Tom cantando, compondo e falando sobre música e até mesmo bobagens, demonstrando que de mito nada teve, era gente como eu e você. E explorem mesmo o "filão" Chico Buarque (no intervalo do especial, os anúncios dos novos DVDs sobre Chico, com o mercado sempre tirando uma casquinha), registrem, vamos falar pra sempre do que é bom pra caramba.

Há gosto pra tudo e você já percebeu que gosto de Chico, Tom e Vinicius. Não vou aqui discutir o que é música popular hoje, o que está sendo esquecido pela galera mais jovem. Vou apenas ressaltar pela milésima vez que devemos agradecer a Deus por ter nos dado Chico, Tom e Vinicius. Por sua poesia, inteligência, música e também sensibilidade social.

Ainda não vi o filme "Vinicius", mas uma reportagem narrou que os espectadores mais velhos têm saudade daquele Rio de Janeiro da época. Não sei ao certo em que sentido falaram (não li a reportagem inteira), mas ao menos no inconsciente coletivo haverá a saudade de um Rio menos violento e mais harmonioso. Não adianta negar, carioca. E "Vinicius" tem evocado essa nostalgia maravilhosa.

Porém eu, sem ter vivido naquele tempo, acrescento ter saudade da classe média de então. Vinicius de Moraes, diplomata, virou nome de rua em Ipanema, por justa causa; Tom Jobim, vizinho e famoso mundialmente; Chico Buarque, filho do autor de um dos livros indispensáveis para se entender nosso país, também morador da Zona Sul, olhos verdes de garoto rico. Pois em todos eles a música - por meio do samba, em todas as suas variantes e manifestações culturais - foi a ponte integradora entre Chico, Tom e Vinicius e os não tão privilegiados.

"O morro não tem vez/E o que ele fez já foi demais/Mas olhem bem vocês/Quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar" - Tom/Vinicius; "Já mandei subir o piano pra Mangueira/A minha música não é de levantar poeira/Mas pode entrar no barracão" - Chico/Tom. Exemplos de como esses expoentes de nossa música relacionavam-se com nossas favelas. Não eram sociólogos, governantes, secretários de Estado ou policiais. Eram músicos, e na parte que lhe cabiam, executavam a necessidade de integração - e não de apartação - das classes altas com as classes baixas. Chico, Tom e Vinicius subiam o morro, e eles desciam ao encontro de Chico, Tom e Vinicius, metafórica e literalmente. Dessa comunhão surgiu parte considerável do DNA de nosso orgulho atual, já mencionado.

Que querem os moradores de Leblon e Ipanema, de uns tempos pra cá? Distância daquela gente. Remoção, desaparecimento, invisibilidade, praias limpas. Precisam de seus BMWs, ainda que a custa de salários de fome dos empregados/escravos. Não querem saber de integração, quando muito de alguma açãozinha social pra conseguir dormir à noite em seus travesseiros com pena de pavão.

(Não sejamos infantis: "moradores de Leblon e Ipanema" é um termo para classe média. Assim como "favela" para classe pobre. Tenho pouco espaço e você pouca paciência para ler na tela do computador, então preciso ser o mais sucinto possível na linguagem).

A questão é: agindo, pensando e fazendo com que seus herdeiros pensem de igual forma, a classe média de hoje desonra seus antepassados, contemporâneos dos personagens reais de "Vinicius". Podem pagar o tributo devido indo aos cinemas e vendo especiais na TV, mas na hora da prática de sensibilidade social integral (e não só pontual), sujam o nome e a obra de Chico, Tom e Vinicius. E ainda dão escândalos nas primeiras páginas quando a violência se acentua, como se a mesma surgisse "do nada", como se não fosse correspondente à exclusão social que avista os incluídos da janela do barraco. Por favor... Se for o caso, fiquem quietos. Ou cantarolem uma bossa nova.

Chega de saudade. A realidade é que sem ela não há paz, não há beleza. É só tristeza e a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai.

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

Arestas do referendo

Como você, eu não agüento mais. Não agüento mais os exaltados defensores do NÃO, nem os artistas globais defensores do SIM. Não agüento mais ter que desconfiar de tudo e de todos para tentar perceber o que está por trás do referendo, quais as reais intenções e as possíveis conseqüências de meu voto... Não falo aqui de alienação, mas de uma saturação que não gostaria de estar sentindo, mas sinto.

Os políticos não quiseram assumir esse ônus para seus mandatos e mandaram o povo escolher e também arcar com as conseqüências. Não quiseram esse desgaste das responsabilidades a assumir antes, durante e depois do referendo, e de repente resolveram exaltar a democracia. Nossos impostos públicos também pagam as milhares de vantagens e assessores descabidos, e nem por isso somos levados a decidir diretamente os destinos de tais verbas...

É o que o referendo está mostrando a todos nós, na verdade: a questão central não é o fato de andarem armados ou desarmados, se a violência vai aumentar ou diminuir, quem é conservador ou liberal. O que a experiência do referendo revela, antes mesmo do escrutínio, é a nossa adolescência democrática. Estamos na puberdade cidadã.

Nossa Constituição faz 18 anos, as primeiras eleições diretas, 17. Por mais precoce que um jovem possa ser, ele passa pelas crises de identidade, responsabilidade e maturidade. O fim da infância, embora ainda não tenha chegado à fase adulta. Dificuldade na hora de tomar decisões que trazem frutos para o resto da vida, terror ao começar a se dar conta de que fazer escolhas significa antes de tudo abrir mão de outras. A inabilidade inicial com as ferramentas que dispõe também é característico da idade.

E cá está o referendo, um instrumento de democracia direta (sem mediação de eleitos) em meio à nossa democracia representativa (com mediação de eleitos). Por que não usá-lo mais vezes? Por que tanta divisão - e desinformação muitas vezes - na hora de discutir e decidir? Como um adolescente que ainda não entende como funciona seus hormônios e ali estão eles, fazendo parte de seu corpo, somos nós com nossa democracia recente e exigindo que demos conta dela.

Levando-se em conta a baixa credibilidade de nossos representantes no Congresso e o desgosto de muitos pela política (agravado pela pasteurização moral do único partido que ainda apresentava-se como alternativa), a democracia teria direito de sobrevida? Chegando só agora à maioridade, estaria ela apta para lidar consigo mesma e com as conseqüências de suas ações?

É esse o contexto de nosso referendo. Nas eleições corriqueiras, muitos votam para em seguida esquecer em quem votaram, como se tivessem repassado rápido uma chata responsabilidade para uns poucos em Brasília. Tal e qual um inconstante adolescente, ficamos indignados quando os eleitos são flagrados nos deslizes de ética etc., a despeito de nossa irresponsabilidade ao votar.

Agora, para decidir se o comércio de armas continua ou não, discutimos uns com os outros sem perceber que o referendo é a melhor maneira de muitos políticos lavarem as mãos em público, para o público e fazendo o público sorrir pensando que conseguiram uma grande vitória. Tal e qual um adolescente, após essa empolgação toda podemos nos frustrar como ao levar o "fora" de um grande amor.

Afinal, o artigo divaga sobre democracia e referendo para chegar aonde? Não sei. Não é meu objetivo recomendar o voto no SIM ou no NÃO, embora ache que o leitor tem o direito de saber de onde me dirijo: voto SIM, por várias razões elencadas pela Frente Brasil Sem Armas. Mas a minha maior preocupação é que o referendo se tornou a nossa maior preocupação, e que ano que vem corre-se o risco de não termos a menor preocupação diante dos que não têm a menor preocupação com o sentido e a responsabilidade de um cargo público.

E teremos gastado toda a nossa energia e desejo de qualificar o debate e depurar nossa crítica somente quanto às armas. E seguiremos desarmados politicamente e prorrogando nossa adolescência democrática para que nossos supostos tutores em Brasília nos confundam ainda mais em nossa identidade como nação.

sexta-feira, 23 de setembro de 2005

Severino Cavalcanti, homem do povo

Ah, Severino... Você pensou que o conto de fadas duraria para sempre? Pois é... Imagino que sua cabeça esteja dando voltas, sem entender direito esse episódio de seus 40 anos de vida pública. Como espectador atento tentarei te esclarecer despretensiosamente, apenas pela consideração com o homem público que você (por enquanto) é.

Lembra, Severino, que em governos anteriores você sempre se candidatava à presidência da Câmara dos Deputados? Chegou a ser primeiro-secretário, mas quando a eleição era para o terceiro homem da República você chegava sempre em quarto, quinto lugar. O chamado "baixo clero" sempre te acompanhou, mas não era suficiente. E a imprensa te dava uma linha nas páginas para depois esquecê-lo com gosto (saudade desses tempos, Severino?).

No entanto, em 2005 a coisa mudou: a base aliada ao Governo estava dividida (algum dia esteve coesa?), o mesmo partido lançou dois candidatos à presidência da Câmara, os oportunistas de sempre alojavam-se em quem convinha melhor. O resultado era imprevisível, mas não tanto quanto foi de fato. Na antevéspera da eleição muita gente mudou seu voto pré-declarado e pronto: você, Severino, era o novo presidente, depois da milésima tentativa.

Você não estranhou que a imprensa sequer mencionou seu nome nessa antevéspera derradeira? Que nunca foi cogitada a possibilidade de você emplacar, Severino? Talvez você não estranhasse o silêncio da apuração jornalística quanto à sua candidatura, mas hoje eu estranho... Enfim: você e o baixo clero mal podiam acreditar que estavam no poder, finalmente. Nem vocês nem o resto do Brasil, boquiaberto.

E você foi um político coerente como há muito não víamos: quis colocar em voga tudo o que pregava antes, a começar pelo aumento constante dos vencimentos dos parlamentares. Você não entendia quando muitos dos que te elegeram se mostraram receosos com decisões assim. Mas não foi pra isso que te elegeram? Acho que não, Severino...

Por que tanta perseguição a você agora, Severino? Por que todos de dedo em riste quanto a sua trajetória política, que não mudou após ganhar a eleição? Por que essa indignação tardia? Será que ela sempre existiu de fato, Severino? Respire, reconheço que é difícil de entender.

Fato é, Severino, que você já cumpriu sua missão. E foi descartado no momento que convinha. Para tirar por impeachment quem foi eleito (presidente e vice), ia sobrar pro terceiro homem da República assumir essa joça. Quando viram que essa oportunidade esbarraria em você, Severino, aí eles viram que foram longe demais.

E tome cheque surgindo (logo agora?), denúncia de propina (logo agora?), acusação de corrupção quando você era primeiro-secretário (logo agora?)... E olha que incrível: a imprensa que nunca te deu bola não saía mais do seu pé. Chegaram a anunciar sua renúncia em capas de revista, como que decretando sua decisão posterior. Premonição ou pressão? A primeira é difícil dizer de onde costuma vir, já a segunda...

E você ainda tentou alertá-los, Severino... Aquele umbigo de fora ao comemorar sua eleição já dizia tudo, e eu fiquei fascinado com sua sutil crítica via jogada de marketing. Você dizia a todos que os parlamentares só olhavam para seus próprios umbigos elegendo alguém como você, que o Brasil era pretexto para a farra de Brasília. Ninguém reparou nisso, né, Severino?

Ninguém reparou também que cassar umas dezenas de envolvidos é inútil. Adianta matar o mosquito da dengue e deixar os focos, as possibilidades de novas investidas? Não, qualquer dona de casa sabe que não adianta.

Aqui estamos nós, Severino, você bem pertinho da gente - o que eu achei valoroso de sua parte ao renunciar. Agora você está condenado ao desprezo, esquecido em seus interesses, enganado quanto às promessas a você feitas. Exatamente como os eleitores de nosso país. Isso é que é político com "cheiro de povo".

quarta-feira, 14 de setembro de 2005

Sandy estava num outdoor

Sandy estava num outdoor, chamando a atenção para uma propaganda, como sua fama a guia. Pulava sobre um automóvel, e eu da janela de meu ônibus (na condição de passageiro e não de proprietário, obviamente) reparei pela primeira vez em seu sorriso. Não vi se era bonito ou sincero, somente reparei. O ônibus fez a curva e meu raciocínio seguiu junto.

Sandy saiu daquele outdoor e foi pra casa. Foi ver TV, ouvir música, ler alguma revista, tirar uma soneca depois do almoço. É uma Sandy diferente da Sandy da propaganda? Vai saber... Mas ela não pode colocar os pés fora de casa. Nada de ataque de fãs, nada disso. Sandy sai de casa, porém condicionada. Sandy é uma máquina.

Sandy não pode acordar de mau-humor e assim sair de casa, ou triste por algum outro motivo pessoal. As capas não dormirão no ponto, e estamparão o diagnóstico: "Sandy em depressão". Sandy não pode brigar com o namorado (não poderia sequer namorar, ao menos como a Sandy de dentro de casa), pois as capas exortarão: "Sandy e Fulano: será o fim?". Sandy não pode falar palavrão, não pode desabafar diante da possibilidade de uma câmera. Sandy precisa sorrir pra pular no automóvel.

Sandy faz shows, sessão de fotos, vai cumprir o contrato global e surgir alguns minutos na telinha, Sandy convocada para a telona, Sandy suspeita de silicone, Sandy Lolita quase nua, Sandy talvez na carreira independente, Sandy címbalo sexual-midiático, Sandy a boa filha, Sandy a inspiração, Sandy e a Melissinha, Sandy e as crianças, os adolescentes, os adultos.

Sandy volta pra casa. Extenuada? Vai saber... Sandy deve adorar colocar os pés em casa e ser a Sandy que sempre sonhou, que ironicamente é a Sandy real, a Sandy que nunca estaria nas capas. Não por ser má pessoa, mas por não ser a máquina que todos precisam e almejam encontrar a cada 15 minutos de fama, renováveis. Sandy olha no espelho e vê espinhas, olheiras e a maquiagem desfeita. Sandy deve sorrir um sorriso diferente do outdoor e deitar na cama que, por enquanto, não possui uma câmera à espreita. Sandy no Big Brother? "Interessante, ainda não havíamos pensado nisso...".

Sandy, a máquina, violenta todo dia a Sandy normal, com o consentimento de seus pais, seu irmão (máquina, idem), sua conta bancária, seus luxos e sua obrigação em se dizer feliz, para alegria do mercado editorial mais rentável. Sandy normal é... normal demais, mito de menos. Sobreviva o mito, tripudiando da humanidade. Sandy humana perde feio, deve doer, mas segura o sorriso até chegar em casa.

Pela primeira vez reparei no sorriso de Sandy. Não julguei nada, sequer sei dizer se era bonito, feio ou oportuno. Mas reparei. Sandy sorrindo é triste, pois não oculta a máquina. Sandy não está sozinha nesse mundo canino que se quer de fadas, o que é um consolo para a Sandy de dentro de casa. Migalha de consolo.

segunda-feira, 4 de julho de 2005

A janela de Roberto Jefferson

Eu tentei fugir, mas ficou extremamente difícil. Cheio de compromissos acadêmicos de fim de curso, deadline para textos em outras publicações, meu blog e meu espaço no site Opinião Pública (link ao lado) relegados a último plano... Mas não teve jeito: contra todas as exortações da prudência e atendendo a anseios que vêm à tona, preciso ser mais um a falar dos (recentes) escândalos de Brasília.

O que mais me chamou a atenção nessa longa jornada em que o Governo atola-se há um mês não foram as denúncias (graves, sem dúvida) nem a decepção com certas práticas que julgava estarem muito distantes do PT, mesmo no poder. A imagem que me saltou aos olhos foi a da janela de Roberto Jefferson.

É incrível como o deputado, acusado de comandar esquemas de propina, recluso com seus advogados e não dando entrevistas, mantinha sua janela aberta ao público. E aos jornalistas, claro: sempre saindo nas primeiras páginas. O dúbio parlamentar fazia questão de manter sua privacidade... com o janelão aberto?

A janela era profética. Nós é que ainda não havíamos entendido.

Desde seu primeiro depoimento na CPI, Jefferson transformou-se na ironia encarnada: convocado como réu, portou-se como promotor de justiça; encaminhado ao curral dos bodes expiatórios, por meio de uma sinceridade profunda e cínica nivelou-se por baixo arrastando todos os seus pares, até então à vontade com as pedras em riste; sem apresentar prova alguma, praticou retórica e balançou a estrutura do poder: já não se conta nos dedos de apenas uma mão quem saiu do Governo ou, no mínimo, foi envolvido nas acusações de Jefferson.

Réu confesso, antes de tudo. No entanto, a amplitude de suas denúncias, o lugar de onde as projetava - o olho do furacão dos governantes da vez, como sempre marchou desde que entrou no Congresso - não deixava dúvidas: enlameado, porém não sozinho. De quem sempre se esperou tais práticas surgem as inesperadas metralhadoras contra aqueles de quem nunca se esperava manchas tão significativas.

A partir daí, roda, roda e avisa: CPI aqui e ali, indignação súbita, moral em alta na baixaria inconsciente etc etc etc. E o que Jefferson ganha com isso tudo? Outra entrevista na Folha de São Paulo; entrevista no Roda Viva; entrevista no Jô Soares. Falamos de Ronaldinho, Roberto Carlos (o cantor), ou de algum outro ícone propício aos palanques acima? De um balcão da Comissão de Ética, passando pela CPI que o acusava (também), Jefferson é convidado a torto e a direito para lugares que emprestam sua credibilidade a um suspeito-mais-que-suspeito.

Os jornais alardeiam: já temos um novo PC, os novos traidores da pátria, mar de lama again. É preciso cobrir tudo isso, claro. Mas os mesmos órgãos de imprensa que nos trazem o Apocalipse atual tentam acalmar: a economia não se abalou, o presidente não está envolvido, o Brasil segue caminhando, apesar de tudo. Agora fiquei na dúvida: é mesmo a maior crise dos últimos tempos? Ou não é? Hein?

Roberto Jefferson colhe, com gosto, o que plantou no seu apartamento: pensávamos que era ele a bola da vez, que ele estava encurralado, vigiado 24 horas por dia pela opinião pública via mídia, mas todos esquecemos do principal: quem abriu a janela foi ele. Jefferson poderia ter fechado a janela, mas não o fez. Ele sabia que ali fora estariam câmeras, fotógrafos e tudo o mais caindo na sua infantil armadilha.

E isso se repetiu depois. Sabe-se lá por que, todo o país e seus porta-vozes entraram pela janela de Roberto Jefferson sempre que ele permitiu. Homeopaticamente, foi lançando suas versões - muitas vezes contraditórias, mas quem lembra desses detalhes no meio do fogo ardente? - ameaçando ter mais munição, espertamente inocentando o mandatário-chefe, porque Jefferson não é bobo. Nem da corte, embora pareça.

Que investigação existe? Que questionamentos aos delatores? O que há é uma janela aberta por alguém, e toda vez que essa janela se fecha, é preciso chamar Vossa Excelência a abrir de novo. Uma janelinha na TV Cultura, outra (repetida) na Folha, mais uma - dessa vez mais informal e divertida - na Globo. Nas sérias CPIs, todos se debruçam na janela retórica de Jefferson, que sai rindo de todas as sessões, sabemos sim porquê. É o gozo da vitória, é o orgasmo de quem tem todo um país na mão.

Foi só abrir a janela.

sexta-feira, 15 de abril de 2005

Agora

Três anos, em março. Uma parte definitiva de vida que operou pelo contraste do que sou e do que estou, do que faço e do que aspiro. Por três anos provações foram minha sobremesa diária após o expediente - ou durante, sendo mais fiel aos fatos reais. O ofício ao mesmo tempo escolhido e descartado: um concurso feito antes do vestibular, a certeza de um dia sair, em busca da vocação encontrada.

Em busca da vocação encontrada. Repito por conseqüência da teimosa revelação que me cercou por três anos, sem trégua ou acomodação. Enquanto as finanças prosperavam e o prestígio/reconhecimento em vida profissional se mantinham na ascendência, o dissabor do sabor interno de realização era amargo. Ali estava, com a certeza tantas vezes confirmada de que não era para ali estar, de que era preciso aspirar sem apenas suspirar. Correr.

E chegaria a estas linhas de outra forma? Sem a provação, como já disse, do praguejar pragmático contra a poesia possível (por que não?), chegaria até a retrospectiva dos três anos com tanta maturidade? Não. Não olharia pra trás com orgulho do aprendizado e das cicatrizes, marcas de expressão pra me relembrar que preciso me expressar. A mim mesmo antes de a qualquer outro, a fim de completar os ciclos, sair do que o concurso me proporcionou, que não era a busca da vocação encontrada.

Encontrada e fiel, não posso agir diferente. A coerência é um chamado, e eu aqui respondo, me publicando contra a minha racionalidade. Se pensasse bem, anotaria num bloquinho pessoal essas conclusões pessoalíssimas sobre profissão e chamado de vida. Mas faço parte do público: estou na primeira fila, aguardando mais do que ninguém o início do espetáculo há tanto anunciado. Ainda que comece timidamente, não remunerado, irregular. Que comece logo a existir, pra que não nasça abortado.

Por soberana ironia, o ofício me levou à enfermidade do tendão, o mal do século eletrônico. E o que já se revelara um obstáculo por meio de suas bondades - sua estabilidade, seu vil metal em boa hora, suas promessas de encarreiramento invejado - ainda atravancava a busca da vocação, agora encontrada. A pseudo-impossibilidade de não teclar, de não expressar, de não vazar, de não parir (abortar?), de não publicar. Rasgava-me sem direção: uma pausa para melhor trabalhar no que não era eu? A cura que nunca vem, maneiremos no uso do PC. Como maneirar o que transborda na gente?

A coerência é um chamado e eu aqui respondo, com umas pontadas acima do punho e no meio do antebraço, prestes a pegar o diploma, na expectativa de largar abismo abaixo o saco de bondades para subir ao cume da vocação encontrada. Três anos se passaram e bem mais que vinte e quatro podem vir, mas hão de vir ao lado da vocação encontrada, que vem na hora boa, a do horizonte permeável à construção do que se quer, do que se almeja, do que se romantiza sem alienação. E que se concretiza, pela graça de Deus.

terça-feira, 8 de março de 2005

Nadar é preciso. Ou precisamente nada?

"Se eu pudesse contar..." é o título de uma música meio antiga, que são minhas palavras hoje. Se eu pudesse contar o que é ter aula de natação após um longo período sedentário, eu contaria. Mas não tenho fôlego, as pernas cansam logo e pior: o molequinho de metade do meu tamanho me vence no crawl.

Já achava péssimo diagnosticar tendinite e escoliose de uma só vez (será que estou em vias de me aposentar, carregando comigo ites e oses?), e configurando-se em cura vem a natação, o pior remédio. É aquele gosto ruim, de uma só talagada, mas sem o qual não melhoro. É só nisso que penso quando paro no meio da piscina, pedindo pelamordedeus que acabe rápido. Professor, que horas são? Na verdade, não tenho coragem de perguntar. Na verdade mesmo, estou cansado demais, e com água no nariz.

Percebi que a aula foi um soco na minha auto-estima. "Você não sabe nadar, não sabe respirar, não se exercita regularmente, agora sofra as conseqüências!". Como muitos relatos dos que escaparam da morte numa fração de segundo, minha vida passa diante de mim e eu me recrimino pelos desprezos atléticos de outrora. Chego à outra margem, olho onde penso que estão os olhos do professor - ele está de óculos de sol - e penso que ele comanda minhas penitências, vestindo a capa de incentivador só pra ser politicamente correto. Neurose minha? Pode ser, entrou muita água no ouvido...

Vamos ouvir o outro lado, como manda o bom jornalismo. O disseminado culto ao corpo nos atrapalha na busca da saúde ideal. Não temos noção se queremos apenas manter um organismo saudável ou ser esbeltos pra não fazer feio - literalmente. Por trás da multiplicação das academias está a tão famosa ditadura da beleza, que desestimula aqueles que sabem que nunca irão consegui-la. Assim sendo, pra que se manter saudável? Pra ter uma aula de natação que me derrube emocionalmente? As batatas fritas, o sofá e a TV me dão mais alegria e (aparente) recompensa.

Quero passar longe do melodrama, mas deixar os leitores próximos de minha tragédia grega nas águas. As "barrigas de tanque" saíram do campo doméstico para a confissão de fé das baladas e "pegações", desnorteando quem tenta sobreviver em meio à lógica do consumo exacerbado - de coisas e pessoas. Estou no meio disso tudo, sem poder fugir da raia. Talvez aquele molequinho me ajude.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005

Reencontro outra vez

"Não sou rico, não sei jogar bola, não sou bom de porrada. Estudar é a minha maneira de chamar atenção." (*)

A frase me atingiu como uma flecha impiedosa. Cai na armadilha da identificação, que adora nos surpreender com o que já somos. Das linhas sai o impacto do se ver naquela descrição. Não adiantava olhar pro lado e disfarçar. Era comigo, era interno, restava-me suspirar e admitir que a frase me despiu.

Daquele jeito foi boa parte da minha vida escolar: sem muito luxo, mas com o suficiente para ir à aula em dignidade. Sempre renegado nas peladas do recreio, o menorzinho que olhava o corre-corre dos grandões, craques que nunca se cansavam. Eu corria, mas das brigas antes delas começarem. Tinha noção de minha fragilidade física, não arrumava nenhuma encrenca e por vezes tentando apaziguar algum desacordo para comigo me sentia meio otário. De repente, um soco de repente faria um bem tremendo pra mim! Mas e a advertência, a suspensão, a reputação, o futuro? Pra mim, a ameaça era séria e fazia meu sangue estancar.

Restava-me sentar na frente, copiar do quadro com rapidez, (tentar) ser um dos melhores alunos. O azul do boletim compensava tudo na minha auto-estima. Nunca tive paranóia de notas altas, mas terminar a prova rápido, naturalmente, sem me apressar, e ser o primeiro a sair de sala dava-me um ar de superioridade em relação aos demais, principalmente a todos que me espancavam emocionalmente.

Se queria também chamar a atenção, não sei dizer. Também nunca aspirei a intelectualidade, embora muitos me encarem assim. E o pior é quando encaram uma superioridade que não existe, intimidatória. Não sou mais criança, e não quero a distancia que precisei obter na escola. Ninguém é melhor ou pior por ser estudioso, craque, zelador ou papa de qualquer coisa. Apenas encontrei meu canto, regado ainda na infância: em meio aos livros, quem sabe um dia parindo um deles.

Mais do que estudar, escrever foi o movimento compensatório definitivo, que me encurralou desde a pouca idade. Movido por lembranças e esperanças, a ponta da caneta fica tonta e as linhas me chamam. Sinto-me mais à vontade do que em qualquer ambiente familiar, percebo que fui gerado pra assim ser e agir: escrevendo, Tirem-me isso e estarão me despedaçando. Estarão me seqüestrando de volta aos recreios intermináveis nos quais eu era preterido, às fases de minha infância que tento apagar traçando letras. Ou reescrever, no melhor propósito do verbo, olhando com olhos mais maduros o que aconteceu em minha imaturidade que fornece para meus 24 anos temas-chaves de vivência. Inegáveis.

Tenho cérebro, coração, mão e necessidade. Minha sede enorme riscando papéis com gosto, sem pretensões. Já quis ser escritor-prodigio, produzir textos aos 16 que se universalizassem e me conduzissem a qualquer tipo de ABL, com ego inflacionado. Hoje descubro que isso é babaquice, que a única coisa vital é me expressar sem ressalvas. É vão negociar com o espaço-tempo vigente a prioridade que o ato tradutório de escrever deve significar para mim. É levar flecha e ainda moribundo lançar outras de volta, mirando apenas no espelho, nada mais. É reler e ser flechado de novo.

Que ninguém encare como uma definição que aspira ser definitiva: mas escrever é ser persistente consigo mesmo. E ai de mim se me negar essa chance.

(*) Trecho do livro "Chove sobre minha infância", de Miguel Sanches Neto.